A medida provisória que muda a estrutura do ensino médio, anunciada pelo governo Temer na tarde desta quinta-feira (22), deveria ter sido discutida abertamente com a sociedade, afirmaram especialistas ouvidos pelo G1. A medida provisória entra em vigor assim que é assinada pela Presidência da República, mas o Congresso Nacional tem 120 dias para fazer a análise do texto, propor mudanças e aprová-lo.

Entre as mudanças anunciadas estão o aumento do tempo de permanência dos estudantes na escola e a grade de disciplinas obrigatórias, que será reduzida para promover a “flexibilização” do currículo. Diretores, coordenadores e especialistas que conversaram com o G1 consideraram as modificações precipitadas. “Não é algo a ser resolvido com uma caneta”, afirmou Débora Cristina Jeffrey, coordenadora do curso de pedagogia da Unicamp.

Veja abaixo as considerações feitas por especialistas sobre o assunto:

Cesar Callegari, conselheiro nacional de Educação
“Ainda preciso analisar com cuidado. Mas o parágrafo quarto do artigo 36 não deixa margem para dúvidas: confunde Base Nacional Curricular com os currículos, o que é um equívoco e, por lei, reduz os direitos de aprendizagem de um estudante brasileiro para o equivalente a 1.200 horas, ou seja, a metade ou até muito menos, no caso do ensino médio integral, que de 2.400 horas irá para 4.200. No meu modo de entender, consideradas a falta de condições ou a falta de compromisso existente em muitos lugares do Brasil, será uma educação amesquinhada, um ensino pobre para pobres.”

Eduardo Deschamps, presidente do Conselho Nacional de Dirigentes Estaduais de Educação (Consed)
“O Consed, desde 2012, vem apresentando propostas em parceria com técnicos, professores, estudantes, representantes da sociedade. Ao longo desse período, apresentou pelo menos três propostas incorporando alterações de currículo, flexibilização e tempo integral. Agora, o MEC acatou a maioria das nossas demandas. Não temos mais como adiar a reforma do ensino médio, é urgente, é prioritária. Quem sofre com a demora em implantar essa reforma são milhões de jovens brasileiros que não encontram sentido no ensino médio. A sociedade sofre, porque o Brasil precisa, em todas as áreas, de cérebros sintonizados com o século 21.”

Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
“Não vai resolver o problema do ensino médio. Há ideias boas, como a flexibilização, mas sem qualquer mudança em questões estruturais, como: uma nova prática pedagógica, uma escola com infraestrutura adequada, a redução do número de alunos por turma, a valorização dos profissionais da educação. Se não gerasse um impacto enorme na reorganização das redes públicas, seria uma reforma cosmética, baseada em um boa ideia – a flexibilização –, mas sem sustentação, pois não envolveu professores e, principalmente, estudantes que ocuparam escolas. Então, é um castelo de areia com dois problemas: Primeiro, abre espaço para malfeitos com recursos do FNDE – que perde mecanismos de controle. Segundo, tornar integral o ensino médio, com mudanças apenas no percurso do estudante tende a ser contraproducente. Além disso tudo, o Art. 36º, parágrafo nono, abre espaço demasiado para parcerias público-privadas.”

Antônio Augusto Gomes Batista, coordenador de desenvolvimento de pesquisas do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec)
“O Cenpec, que tem como premissa a defesa da educação pública, gratuita e de qualidade para todos, vê com preocupação a proposta de reformulação do ensino médio apresentada pelo governo federal, que pode acirrar ainda mais as desigualdades escolares, mesmo que o Cenpec seja a favor de uma flexibilização curricular nessa etapa da educação básica. A primeira crítica a ser feita é sobre a forma como a proposta é apresentada, por meio de MP (Medida Provisória). Uma condição importante para o sucesso da implementação de políticas é a participação da comunidade de educadores e da sociedade em geral, sua mobilização e a construção de consensos possíveis. Além disso, não há nenhuma indicação de que haverá ações específicas para sanar os déficits de aprendizagem dos estudantes que ingressam hoje no ensino médio, de forma a prepará-los para escolher de forma qualificada as suas possibilidades de itinerários formativos e de projeto de futuro. É preciso lembrar que as escolhas dos jovens são feitas conforme a sua condição social, ou seja, de acordo com as oportunidades que tiveram ao longo da sua vida.

Outro ponto de atenção é que a oferta reduzida de educação integral em regiões vulneráveis pode ampliar as desigualdades. Embora seja positivo priorizar esses territórios na implementação das políticas públicas, o número de escolas que irá oferecer o novo modelo de ensino será muito reduzido, o que pode levar as populações vulneráveis, sobretudo os estudantes que precisam trabalhar, a evitarem esses estabelecimentos e a buscarem outras unidades vizinhas de tempo regular. Estudos do Cenpec e a também recente auditoria do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo têm demonstrado que a oferta reduzida de educação em tempo integral tende a ter um efeito negativo nas escolas vizinhas de tempo regular, como, por exemplo, a superlotação. Além disso, o sucesso da nova proposta está diretamente condicionado pelas possibilidades que as redes têm de oferecerem diferentes itinerários formativos nos territórios, sobretudo em municípios de pequeno porte econômico, com infraestrutura escolar precária, menor capital humano ou com menos possibilidades de parcerias com setores da indústria, comércio ou terceiro setor.

A proposta não cita o ensino médio noturno e, segundo dados do Censo Escolar de 2015, do Inep, 1,9 milhão (23,6%) de alunos estuda no período noturno. E a nova proposta não avança na ampliação dos investimentos, pois o valor apresentado é menor do que era repassado pelo ProEMI (Programa Ensino Médio Inovador), desenvolvido desde 2009. A Resolução Nº 31, de 22 de julho de 2013, que dispõe sobre o repasse de recursos do PDDE Ensino Médio Inovador, já previa o investimento complementar de R$ 2,8 mil por aluno/ano para escolas com jornada escolar de sete horas. A proposta atual é de R$ 2 mil/ano. O Cenpec não é contrário à flexibilização do currículo ou à maior diversificação da oferta do ensino médio; contudo, é preciso atenção à forma como a política será implementada de fato, para que não resulte na ampliação das desigualdades de oportunidades educacionais.”

Eduardo Mufarej – Presidente da SOMOS Educação
“A reforma do Ensino Médio é um passo importante e cada dia mais urgente. Sabemos que ela não á única solução para todos os problemas da educação básica brasileira, mas a realidade é que estamos andando de lado, enquanto o mundo anda para frente. Para muitos de nossos jovens, a escola de hoje está distante de sua realidade e aspirações. Precisamos resgatar o interesse e a confiança desses jovens na educação secundária, elo essencial para sua formação como cidadão e também para sua inserção no ensino superior ou no mercado de trabalho. É um movimento para sairmos da inércia e caminharmos para uma educação mais moderna, em que é dada ao aluno a competência para enxergar a sua vocação e praticar suas escolhas. Dito isso, volto a dizer que a sua simples edição não é fórmula mágica para superar os desafios da educação no país. É um primeiro passo que deverá ser seguido de muito trabalho para fazer com que as mudanças realmente ocorram. Os desafios não são poucos, mas estamos entusiasmados para encará-los”.

Sônia Magalhães, diretora-geral do Colégio São Luís, em São Paulo
“A reorganização do ensino médio proposta na medida provisória me parece precoce. Mais eficaz seria aguardar a finalização do trabalho de construção da Base Nacional Curricular Comum e, após essa definição, discutir sobre a estrutura mais adequada para o desenvolvimento do currículo, não apenas no ensino médio, mas em toda a educação básica. Essa me parece uma incoerência de fundo. Além disso, penso que já temos suficiente flexibilidade na atual Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional, assim como a indicação do trabalho por áreas nos Parâmetros Curriculares Nacionais. O que tem nos faltado é capacidade de implementação do que está proposto nestes dois documentos, inclusive no que toca à formação universitária dos professores. Com o dito e divulgado até agora, não consigo ver o que pode haver de qualitativamente importante nesta medida provisória.”

Esther Carvalho, diretora-geral do Colégio Rio Branco, em São Paulo
“Há tempos sentimos que o ensino médio necessita de outros propósitos. David Perkins, professor da Universidade Harvard, ao discutir o conceito de currículo necessário para o mundo contemporâneo, traz o termo ‘gap de relevância’ com relação a esse segmento. Por outro lado, fica bastante claro que o que define o currículo do ensino médio no Brasil é o processo seletivo ao ensino superior. No Estado de São Paulo, por exemplo, um vestibular que tem muito impacto no desenho do ensino médio é a Fuvest. Enquanto a Fuvest tiver a lista enorme de conteúdos que hoje apresenta para seu processo seletivo, as escolas de ensino médio que têm por objetivo que seus alunos sejam bem sucedidos nesse vestibular, terão que trazê-los para dentro da sala de aula. Enquanto conceito, a proposta de mudança nos parece muito interessante. Traz flexibilidade curricular, atendendo diferentes perfis e projetos de alunos. Traz também, novos desafios de desenvolvimento profissional aos educadores para que os objetivos sejam alcançados. Em termos de políticas públicas, o trabalho com os educadores precisa ser bem elaborado e implementado. No país, o Enem não é o único exame de acesso ao Ensino Superior. Haverá impacto significativo se o Enem se transformar em componente curricular obrigatório ao Ensino Médio, como é o Enade para o ensino superior. A previsão é que os primeiros alunos a serem afetados pelo novo formato sejam os que iniciarem o ensino médio em 2018, segundo o Ministério da Educação (MEC). Durante o ano de 2017 devemos trabalhar para desenvolver e detalhar as diversas etapas para que esse modelo seja bem sucedido. Precisamos ter cautela para estabelecer um processo de transição em que os alunos possam usufruir da nova proposta de forma que ela traga, efetivamente, mais ganhos do que perdas.”
O que muda com a reforma do ensino médio (Foto: Arte/G1)
Fonte: G1