Kite não abriu mão de sua carreira. Ao contrário, ele passou a viajar quilômetros e quilômetros para chegar ao trabalho.

Casos como o dele estão se tornando tão comuns em alguns países que esses profissionais ganharam até um nome em inglês: “super-commuters”, ou pessoas que viajam mais de 150 quilômetros para chegar a seu local de trabalho.

Mas, ao contrário dos trabalhadores comuns, os ‘super-commuters’ não se deslocam diariamente – preferiram trocar isso por uma viagem semanal ou quinzenal ao trabalho, para poder gozar de um estilo de vida mais agradável do que quando moravam mais perto.

Kite, por exemplo, percorre de avião os 965 quilômetros que o separam de Londres a cada duas semanas, e concentra seus pacientes nos dias em que está na capital britânica. Nesses dias, ele aluga um quarto perto de seu consultório.

Logo que optou pelo novo estilo de vida, sua renda caiu. Mas, agora, o custo bem menor de morar no interior da França (em comparação com a caríssima Londres) e o uso de passagens e acomodações baratas compensaram a ponto de poder saldar antigas dívidas.

“Tenho muito mais qualidade de vida”, diz ele.

Especialistas que se dedicam ao estudo dos deslocamentos diários de trabalhadores nas grandes cidades estimam que existam centenas de milhares de “super-commuters” em várias partes do mundo.

Segundo eles, isso se deve principalmente aos avanços da tecnologia e à proliferação das companhias aéreas de baixo custo. Juntos, esses fatores tornam mais baratas e mais fáceis as viagens de longa distância de casa para o trabalho.

Na Europa, por exemplo, companhias aéreas como a Easyjet e a Ryanair agora oferecem um total de mil rotas, e o preço das passagens às vezes chega a US$ 50 (aproximadamente R$ 160), praticamente o mesmo preço de um passe semanal para o metrô em Londres.

Segundo a Easyjet, uma parcela cada vez maior de seus 12 milhões de passageiros na classe “business” viaja entre a casa e o trabalho.

EUA e Oriente Médio

Entre 2002 e 2009, o Centro de Estudos do Transporte da Universidade de Nova York descobriu que o número de “super-commuters” em Houston, no Texas, dobrou para 251.299, representando 13,2% dos trabalhadores da cidade.

Em Manhattan, esse grupo cresceu 60%, chegando a 59 mil pessoas, a maioria vinda da Filadélfia, a 161 quilômetros. Um dos deslocamentos mais populares dos Estados Unidos ocorre no Arizona: cerca de 55 mil pessoas que vivem em Tucson e trabalham em Phoenix, percorrendo diariamente 322 quilômetros ida e volta.

Esses deslocamentos podem ser ainda maiores em alguns casos. A Polícia Metropolitana de Londres teve um funcionário que vinha da Nova Zelândia, a 19 mil quilômetros. Ele trabalhava durante dois meses consecutivos e tirava os dois meses seguintes de folga.

E estima-se que cerca de 300 mil libaneses façam voos de três horas para trabalhar no Golfo Pérsico, em geral no setor de petróleo, mas mantêm sua residência no Líbano.

Menos estresse

David Furlong, corretor de finanças de 52 anos, recentemente comprou uma casa no sul da França e viaja semanalmente para Londres. Isso só foi possível, no entanto, porque sua empresa permite que ele trabalhe de casa um dia por semana.

Para ele, o custo de manter dois endereços residenciais é compensado pela possibilidade de passar fins de semana prolongados em um lugar ensolarado e tranquilo.

Furlong conta que tomou a decisão de mudar de vida quando perdeu vários amigos e colegas por problemas de saúde precoces, que ele atribui ao estresse. “Percebi que precisava encontrar um equilíbrio na vida”, diz.

Um dos “super-commuters” de Nova York é o marido de Megan Bearce, autora do livro Super Commuter Couples: Staying Together When a Job Keeps You Apart(“Casais super-commuters: Como seguir juntos quando um emprego os mantêm separados”).

Quatro anos atrás, apenas seis meses depois de a família se instalar em Minneapolis, o marido de Bearce conseguiu um emprego dos sonhos em Nova York, a mais de 1,6 mil quilômetros de distância.

O casal resolveu tentar sua sorte e não se arrepende. “A experiência tem sido maravilhosa”, diz a autora, ressaltando, no entanto, que pessoas que estejam considerando a hipótese de se mudar para mais longe do trabalho “pensem bem nos custos financeiros e emocionais”.

Resultado da crise

Mas nem todo mundo que opta pelos grandes deslocamentos o faz porque quer.

Com a crise global iniciada em 2008, muitos americanos encontraram dificuldades para vender suas casas em algumas áreas do país, e o mercado de trabalho encolheu drasticamente. “As pessoas foram obrigadas a procurar empregos mais longe de casa, sem poderem se mudar”, lembra Bearce.

Na Espanha, também atingida pela longa recessão, algo parecido aconteceu. Eudald Ayats, engenheiro químico de 35 anos, mora em Barcelona, mas não teve dúvidas quando conseguiu um trabalho em Bruxelas, a duas horas de avião.

Ele negociou com a empresa uma ajuda de custo para as viagens e a acomodação e aceitou o emprego, deixando sua companheira na capital catalã enquanto ele vai à Bélgica de segunda a sexta. “Nossa situação financeira melhorou e nós dois adoramos o que fazemos”, conta.

Plano B

No entanto, qualquer que seja o motivo para pensar em adotar os grandes deslocamentos, aqueles que já tentaram recomendam cautela.

“Tenha um Plano B para o caso de a experiência não se mostrar compensadora depois de seis meses”, diz Bearce.

Kite sugere testar o novo modo de vida antes de fazer uma mudança definitiva.

Terrence Karner, da consultoria Deloitte, em Chicago, está no meio de uma temporada de seis meses no escritório da empresa em Nova York, em busca de melhores oportunidades. Ele viaja semanalmente entre uma cidade e outra e, enquanto se sente estimulado profissionalmente, percebe as pressões que a distância coloca em seu casamento.

“É importantíssimo compreender os esforços que seu parceiro faz quando você não está em casa”, afirma. “Sei que minha mulher está sempre ocupada com a casa e as crianças.”

Apesar das saudades, o casal acredita que a experiência está valendo a pena. “Foi algo que fizemos fora de nossa zona de conforto, mas as oportunidades que tenho em Nova York são um grande benefício”, conta. “Pode ser um clichê, mas a economia global exige cada vez mais esse tipo de comprometimento.”

Fonte: BBC Brasil