Texto de Diogo Arrais *

Entedia-se mais quem não se rende aos encantos literários; entendia-se mais quem não se rende às constantes lições de uma senhora Literatura, que professa vocábulos sem-fim.

Em Missa do Galo, Machado de Assis, devido a uma sinfonia sintática particular, homenageia – de diversas formas – nossa Língua. Um trecho desse conto, inesquecível, professa aquelas raras aulas não somente gramaticais:

“Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que soube que o teatro era um eufemismo em ação.”

Durante a leitura, é natural que existam observações vocabulares, linguísticas. Que, por exemplo, significa a palavra “socapa”, perguntaria o observador?

Socapa remete a “disfarce”, a “fantasia”, a “dissimulação”, a “sem que se veja”. Curiosamente, ao pesquisar o termo para este texto, deparei-me com o mesmo trecho de Missa do Galo, no próprio dicionário.

Já na oração “e as escravas riam à socapa”, o uso do acento aponta para uma locução adverbial feminina: um dos casos obrigatórios de crase.

Em outros termos, percebe-se que as escravas riam de uma maneira, de um modo furtivo, de um modo disfarçado. Como a expressão “à socapa” modifica a ação, é outrossim uma locução iniciada por “a”, o acento grave é obrigatório.

No dia a dia, as locuções adverbiais femininas são muito presentes: “estar à disposição”, “comer à francesa”, “pagamento à vista”, “falar à vontade” etc. Aliás, sem a presença do acento, ambiguidades ou outros problemas de compreensão ocorreriam.

Não bastasse a lição gramatical envolvendo o substantivo feminino “socapa” e o bom uso do acento, o escritor nos brinda com o eufemismo (recurso de linguagem responsável pela suavização ideológica) “…soube que o teatro era um eufemismo em ação”. Nesse instante, o espectador (leitor) pode fazer referências mentais diversas: atores, atrizes, palco, arte, …

Era um eufemismo em ação. Machado, o velho e eterno Machado, era a própria suavização, na elegância, em ação.

Como disse no início, rendendo-me aos encantos literários, meu tédio diminui.

Um abraço, até a próxima e siga-me pelo Twitter!

* Diogo Arrais é Professor de Língua Portuguesa – Damásio Educacional e autor gramatical pela Editora Saraiva.

Twitter: @diogoarrais

Fonte: Exame.com