Já imaginou se candidatar a uma vaga de emprego sob a condição de omitir informações básicas sobre si mesmo, como nome e gênero? Essa é a premissa do “currículo cego”, modelo que começa a ganhar força no mundo do recrutamento na Europa.

Nesse tipo de CV, dados como idade, gênero, nacionalidade e endereço do(a) candidato(a) não aparecem. Nome e sobrenome são substituídos por iniciais e, se necessário, o endereço de e-mail sofre adaptações para que não seja possível saber como a pessoa se chama.

O objetivo é evitar que o recrutador seja influenciado por seus preconceitos — sejam eles conscientes ou não. Protegida pelo anonimato, a pessoa que se candidata à vaga não é descartada automaticamente por olhares sexistas ou racistas, por exemplo, e pode ser analisada somente por seu perfil profissional.

Na Alemanha, por exemplo, candidatos com nomes tipicamente germânicos têm 14% mais chances de serem chamados para uma entrevista de emprego do que aqueles que têm nomes característicos da Turquia, pátria de grande parte dos imigrantes no país.

O exemplo não é isolado. Diversas empresas e governos do velho continente vivem um problema que se acentuou com a crise migratória: a discriminação de profissionais com nomes ou sobrenomes típicos do Oriente Médio ou da África — o que embasa a omissão desse dado na primeira etapa do recrutamento.

Desde 2014, na França, qualquer empresa com mais de 50 funcionários é obrigada por lei a usar o modelo do “CV cego”. Países como Holanda e Reino Unido também aprovaram essa política para o recrutamento de pessoal para o governo, e incentivam as empresas privadas a fazerem o mesmo.

Europa x Brasil

Para Ricardo Basaglia, diretor da consultoria de recrutamento Michael Page, é urgente reduzir a discriminação nos processos seletivos, mas a proposta do “currículo cego” se aplica ao contexto europeu, e não ao brasileiro.

“Como não temos tantos imigrantes como a Europa, o preconceito não aparece tanto por causa do nome da pessoa”, diz o diretor da Michael Page. “Por aqui, a questão surge mais na etapa presencial, nas entrevistas, e não tanto na fase de análise do currículo”.

Qual é a saída então? Na visão do executivo, é preciso investir em mudanças culturais mais amplas — uma oportunidade aberta em um momento histórico de profunda discussão sobre diversidade.

“Acredito que ferramentas que buscam reduzir automaticamente as chances de discriminação são bem-vindas, mas precisam ser trabalhadas em conjunto com uma transformação na mentalidade dos tomadores de decisão”, explica.

Ana Alice Limongi-Gasparini, diretora de RH da NeoBPO, até agora não viu nenhuma empresa brasileira colocar em prática o modelo do “currículo cego”.

Na visão da executiva, a melhor forma de atacar o problema, no nosso caso, é investir em treinamento e acompanhamento dos recrutadores. O primeiro passo é analisar se a diversidade está presente no conjunto de pessoas que chegam às fases finais dos processos seletivos, além de fazer pesquisas de clima sobre o assunto para embasar o diagnóstico.

“Se for realmente percebida a necessidade de interferir, é importante acompanhar processos seletivos para observar o que está impedindo a contratação de certos grupos, mas sem direcionamentos forçados”, diz Limongi-Gasparini.

O caso Nubank

Exceção no cenário nacional, o Nubank decidiu instituir uma etapa “cega” em um dos seus processos seletivos — sem relação com o currículo, porém.

O mecanismo aparece em uma das etapas do recrutamento de engenheiro de software da startup brasileira.

Funciona assim: um dos exercícios propostos para medir os conhecimentos do(a) candidato(a) sobre códigos de programação deve ser entregue à equipe examinadora sem qualquer referência ao seu nome ou quaisquer dados pessoais.

“A omissão da identidade permite que o foco da avaliação esteja apenas no trabalho desenvolvido pela pessoa”, explica Daniela Belisário, diretora de RH do Nubank. “Fizemos isso porque percebemos que a primeira avaliação não demandava mais do que a resolução do exercício em si”.

A seleção não acontece de forma totalmente anônima: há uma conversa prévia com os candidatos para analisar se eles se encaixam no perfil procurado. Após a avaliação “cega”, novamente eles são vistos pelos avaliadores para explicar por que resolveram o exercício daquela forma.

“Queremos times diversos e há vários processos para alcançar esse objetivo”, afirma Belisário. “De forma ‘cega’ ou não, buscamos a pessoa perfeita para cada vaga, independentemente de raça, gênero ou orientação sexual”.

Fonte: EXAME